segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Post do Desabafo 2: "Sobre um esmagamento velado e a importância das letras"



  Eu li I love my husband pela primeira vez enclausurada numa sala sem reboco e me senti estranha. Não sabia os porquês mas senti um vento gelado nas costas. Me esforcei pra não admitir que não sabia. “Coitada”, eu pensei.   Tentei me convencer de que era ficção e de tão cruel não atravessava a barreira tênue do real. Anos dizendo aos outros que eu não gostava muito da Nélida em vez de assumir que o me faltava era coragem para lê-la novamente. Hoje narro meu próprio conto. Hoje percebo que não era a sala sem reboco que me enclausurava. 

  Dentre tantas, ele me escolheu pra ajudá-lo a superar uma desilusão. Eu deveria agradecer, é uma responsabilidade grandiosa. Eu ainda era virgem e pedi calma, não queria atropelar as coisas. Ele consentiu. Tão compreensivo... Ele não queria nada sério, disse que jamais namoraria uma mulher sem antes transar pra saber como é. Entendi. Concordei. Sem saber, ele me fazia entender e concordar com tudo. Durante nossas conversas, nas quais ele depositava palavras de carinho camufladas por soberba, ele dividia sua atenção em várias partes, iguais ou não. “Nós combinamos que não tínhamos nada sério...” Eu pedia desculpas. Elas eram tantas e de tão lindas me faziam sentir raiva. Ele me fez desgostar de pessoas incríveis que de mim não se diferiam em nada. Sinto muito. Não foi culpa de vocês. 

  Eu deixei de ser eu mesma pra ele me notar. Transamos, doeu, mas ele foi gentil e não forçou a barra. Agora ele sabe como é, podemos namorar. Nos aproximamos mais, eu me aproximei dos amigos dele. Era quase tudo o que eu queria. Ele contava tudo o que fazíamos na essência de nossa intimidade a esses amigos. Não tem problema... eram meus amigos também. Eles me olhavam com malícia entre uma nota e outra. Ele me fez acreditar que era elogio. Claro que era. Mesmo se depois esses amigos mirassem o mesmo olhar malicioso às outras, é melhor do que ser vista como uma mulher que não satisfaz. 

  Um dia ele bebeu. Na minha cabeça eu era a mais legal de todas por ser a única mulher da roda. Ele disse na frente de todos aqueles desconhecidos que toda mulher cheira mal e que eu não era diferente. Me senti péssima mas tentei esconder, não queria desapontá-lo. Não consegui. Quando os outros foram embora ele pediu desculpas. Desculpei. 

  Ele me fez acreditar que eu era atraente por ser prendada. Que eu era a pessoa mais inteligente que ele conhecia por achar que feminismo não era pra mulher de respeito. Que era sexy ser submissa. Eu me sentia amada, mesmo sabendo que não era.

Nosso relacionamento era uma montanha russa e na maior parte eu fiquei de ponta-cabeça. Terminamos, mas ele adoraria continuar meu amigo. Aceitei. Melhor que nada. Ele disse que eu era ótima quando estava com ele mas depois eu fiquei chata. Eu me desculpava, não queria parecer uma louca. Ninguém gosta de louca. A vida dele continuou igual. A minha vinha sendo até então ocultada por um véu escuro e abafado e eu continuava sem conseguir ler Nélida. 

  As minhas experiências seguintes não foram diferentes. Pelo menos eu tinha um exemplo do que me fazia mal. Mas me fazia mal? Não, não sei. Melhor esquecer o que disse. Desde um descontruído que acreditava em poliamor mas que não amava nada além do próprio ego a um amante da natureza que se achava bom o suficiente pra resultar numa paixão avassaladora vinda de mim e todas. 

  Foi só depois de eu aceitar os períodos construídos não só por Nélida, mas por Clarice, por Lygia, Hilda, Cecília que descobri em mim a intrínseca coragem em tirar o véu. Essa coragem já residia em mim mesmo quando o resultado das leituras não passava de um vento gelado nas costas. 

  “A literatura estragou as tuas melhores horas de amor”. Era como se Drummond tivesse ocultado meu nome da posição de vocativo antes deste verso. Com todo respeito, Carlos, mas a verdade é que a literatura me desprendeu daquilo que eu achei que significasse o amor. Amor, que depois de tanto tempo depositei em mim mesma. Hoje, a narradora que vos fala não precisa fingir ser quem não é pra fazer transbordar alguém. Reciprocidade. Essa é a palavra tatuada do lado de dentro da minha pele, onde o sangue corre e afoga as células sombrias de um passado até então escondido. Ela não precisa se dividir ao meio para ser a metade de alguém. Sendo inteira, vem um outro inteiro igualmente amável que a ela simplesmente se soma, se sente, se vive. E não se esmaga. 

Ass.: Anônima.